Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

Rasto de Sangue #2

O restaurante passara a ser mais um bar, com alguns pratos rápidos, ao longo do tempo. Desde que a mãe de Beth morrera, uma cozinheira de mão cheia, o seu pai, o Sr. Miller, tinha deixado de confecionar grandes pratos de outrora.
Beth entrou no salão, dirigindo-se atrás do balcão. Estavam com bastante clientela, e Rachel e Marcie, as empregadas de mesa, estavam ambas atarefadas com os pedidos.
- Tudo certo? - Perguntou o Sr. Miller.
- Sim. Sabes que o John raramente comete erros.
O Sr. Miller sorriu.
- Ele deve ter uma opinião diferente, em relação a um certo aspeto.
Beth olhou-o, semicerrando os olhos felinos, com os lábios a desenharem uma fina linha.
- Porque é que toda a gente decidiu meter-se na minha vida?
O Sr. Miller olhou a filha.
- Não estou a meter-me. - Tal como Claude, ele nascera e crescera no Louisiana. Encostou-se ao balcão e cruzou os braços. - Só... Bem, foi uma forma de mudar de assunto.
- Para quê? - Beth conhecia muito bem aquele tom de voz. Sabia que o pai estava prestes a fazer-lhe algum tipo de revelação estonteante.
- Falei com o John. Estou velho, Beth, sabes disso.
- 55 anos não é ser-se velho. - Rosnou Beth.
- Sim, sim... Mas quero descanço. Não quero deixar-te isto tudo ás costas, pensei que...
- Nem penses em fazer do Ryan o meu sócio! - Explodiu Beth. - Adoro o meu irmão, sabes disso, mas o Ryan não percebe nada que não tenha a ver com carros! Ele só percebe de motores, mamas e rabos! Nisso é profissional!
Ryan era mecânico e, para além disso, pouco sabia fazer e nunca mostrara interesse em gerir o negócio do pai. No entanto, passava algumas horas sentado ao balcão, estudando formas de engate com que atacava as raparigas que apareciam, a fim de as levar para a cama.
O Sr. Miller sorriu, assentindo com a cabeça.
- Eu sei. Por isso mesmo é que decidi que o John viria trabalhar contigo. Ele anda cansado da distribuição, apesar de adorar aquilo, mas seria uma grande ajuda para ti. Além disso, o homem é inteligente. E forte. Consegue carregar caixas, já que eu nem empurrá-las pareço conseguir.
O pensamento de Beth perdera-se e nem chegara a ouvir a frase até ao fim. Desde quando o pai entregava o negócio a uma pessoa de fora? Mesmo que essa pessoa fosse o delicioso, sexy e deslumbrante John?
- O quê? - Disse Beth.

 

De braços cruzados, Beth estava plenamente ciente da presença de John, sentado ao seu lado, numa das cadeiras em frente á secretária do escritório. Do outro lado, sentava-se o Sr.Miller, falando e olhando os dois, como se fossem crianças. Beth sentiu o toque do joelho de John no seu, quando este se mexeu para pegar numa folha.
Bufou de impaciência. Ela gostava de John, sim, afinal eram amigos, mas tê-lo como patrão? Agora é que os planos de casamento iam parar de ser apenas ideias ditas da boca para fora. As velhotas, e as cuscas das vizinhas, iam dar gritos de prazer quando soubessem da novidade, que eles seriam colegas de trabalho. Beth desconfiava mesmo que, algumas delas, já se divertiam sozinhas á custa de John.
O telefone tocou e ela estendeu a mão, levando o aparelho ao ouvido.
- "Maltese", boa tarde, fala a Beth. - Disse, esperando resposta do outro lado.
Beth escutou um som estranho, algo estrangulado e molhado, como uma partida de Halloween. Mas estavam em pleno Verão.
- Sim? - Perguntou. - Em que posso ser útil?
Os olhos de John estreitaram-se quando ele franziu o sobrolho, Beth encolheu os ombros, escutando o mesmo som sinistro do outro lado. Irritada, novamente, Beth desligou o telefone.
- Quem era? - Perguntou-lhe o pai.
- Não sei. Não disseram nada. - Beth esfregou a testa, fechando os olhos. - Explica-me lá outra vez o porquê disto tudo?
O Sr. Miller suspirou.
- Beth, é o...
O telemóvel de Beth tocou, e esta retirou-o do bolso, vendo tratar-se de Ryan.
- Sim? - E esperou, mas nada ouviu, a não ser o mesmo som macabro. - Ryan? Ryan para já com a brincadeira, estamos a meio de uma reunião importante! Tem juízo!
Mas o som continuava e Beth sentio um arrepio no corpo.
- Ryan? - Chamou.
No meio do tom molhado, Beth pareceu distinguir uma palavra, quase soprada pelo esforço.
Levantou-se de um pulo e saiu do escritório. Escutou o pai e John atrás de si, enquanto se dirigia ao carro.
- Beth! - Gritou o pai.
- É o Ryan! - Gritou Beth, entrando no carro. - Tenho de ir. Espera-me aqui!
Assim que saiu do parque de estacionamento, Beth conduziu que nem louca em direção a casa. Ryan estava de folga, de certeza que aproveitaria o dia para dormir. Viu o sinal passar a vermelho, mas não parou nem abrandou, pagaria a multa se isso lhe permitisse ter a certeza de que o irmão estava bem.
Parou o carro á porta de casa, saindo a correr em direção á porta da entrada, deixando o carro aberto. Levou a mão aos bolsos e soltou um grito de frustração.
- O que foi?
Beth gritou de susto e olhou para trás, vendo John colado a si, e só nesse momento se apercebeu de que ele a seguira.
- Esqueci-me das chaves! - Disse, em pânico. - O Ryan está aqui, o jipe dele está no lugar de sempre! Eu juro, John, era ele ao telefone!
John olhou em volta.
- Tens tudo trancado?
- Sim. Saí a correr, duvido que ele tenha aberto uma janela que fosse.
John puxou Beth para trás, respirou fundo e lançou-se sobre a porta, fazendo-a voar para dentro da sala.
Tudo estava calmo, contudo Beth sentiu um cheiro estranho no ar.
A casa era antiga, com divisões espaçosas, e mais do que aquelas que Beth poderia usar. Ela correu para o quarto de Ryan, no piso superior, encontrando-o num desalinho, mas vazio.
- Beth! - Chamou John do andar de baixo.
Beth desceu as escadas e parou junto do amigo, que se encontrava junto da porta das traseiras. A porta vidrada estava no chão, partida. As cadeiras jaziam no chão, como cadáveres pálidos e imóveis. A rapariga dirigiu-se á sala de jantar, seguindo a barafunda de tapetes, decoração e mobiliário no chão.
A porta, encostada, abriu-se sem esforço e Beth olhou para o interior, soltando um grito medonho, capaz de acordar todos os mortos do mundo.

 

Rasto de Sangue#1

Carta para o meu Avô

Querido Avô,

Não chorei. Não me permiti chorar, porque disseste-me que estava tudo bem. Mostraste-me, da forma possivel, e eu senti-o. Estavas, finalmente em paz. Acabara o sofrimento, a angústia, a espera.

Mesmo com todos os erros, sempre gostei de ti, acho que o sabes. Mesmo quando dizia ou pensava algo errado. De certa forma eras uma inspiração, por todos os horrores passados, por aquela força no último desafio.

Não foi justo, mas no fundo era o que preferias, via-o nos teus olhos e ninguém o pode desmentir.

Sinto-te em cada canto, e ainda espero ver-te sentado no teu sofá (que durante algum tempo foi o meu), mas sei que não voltarei a ver-te. Talvez um dia quando nos encontrarmos novamente.

Não chorei. Até posso ter chorado em silêncio, nos espaços remotos da minha mente, mas por ti, mantive-me calma. Claro que as lágrimas aparecem quando penso, quando me apercebo, novamente, da realidade. Mas são substituidas pelos momentos divertidos, como aqueles que surgiam durante um jantar, ou um almoço.

Tenho saudades, claro que tenho saudades e ainda não tive a oportunidade de te entregar nada que mostrasse isso, mas sei que sabes de tudo, e percebes porque ainda não o fiz.

Espero ver-te novamente (hoje ouvi-te, sabias? aquele som caracteristico da boa disposição chegou-me aos ouvidos), mas enquanto isso não me é possivel, espero que estejas em paz, junto dos que já partiram e deixaram a nossa familia mais reduzida. E espero que estejas junto do anjo que mais adoro, sim, porque ela só se pode ter tornado um anjinho, a olhar por nós.

Cuida dela. Cuida de ti.